quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Era uma casa muito engraçada


E então, após muito perambular por terras baianas, finalmente chegamos lá. Chegamos onde queríamos. Achamos o que procurávamos desde o início.
Pra chegar? Uma baita peregrinação. Lancha, ônibus, mais ônibus, barco, trator. Um dia inteiro de estradas verdes e marrons, de paradas em lanchonetes cheias de moscas e vazias de gente, de baldeações em estradas fantasmas, carcomidas por poeiras e por um silêncio a-temporal. O ar cheirava a poeira quente, enquanto o mar nos segredava promessas. Nas costas, o peso da mochila; à frente, a leveza de simplesmente ser, de descobrir e de seguir adiante.
Depois dessa peregrinação sem fim, eis que finalmente chegamos ao nosso destino. O lugar? Moreré, um pedacinho da ilha de Boipeba. A pousada? Canto do Moreré, uma pequena reserva de mata atlântica, inteiramente preservada e intermeada por algumas cabanas de palha. Sim, cabanas de palha. Nada de bungalows, suítes ou chalés. Como o dono da pousada nos disse, o intuito deles era o de preservar o habitat natural da ilha e reproduzir as antigas cabanas de seus moradores, aliás nem tão antigas assim: há apenas 15 anos, tudo o que havia em Moreré eram algumas cabanas de palha de pescadores locais.
Após chegarmos ao vilarejo, fomos conduzidos à pousada por um menino de seus 6 ou sete anos, de pele preta, pés descalços e olhos ligeiros. Caminhamos por uma rua de areia, com paredes e teto de mato. Aqui e ali, goteiras de céu e de sol abriam pequenos buracos, desenhando no chão sombras que brilhavam.
“É por aqui”, ele nos disse, abrindo um portão que era aquele, mas que podia ser qualquer outro. Entramos e olhamos em volta. Nada de recepção, de papéis com avisos de check out ao meio-dia ou de folderes com cara de férias. Apenas mato e cabanas. Seguimos em frente por uma trilha escura e misteriosa, não porque procurávamos alguém, mas antes porque, nestas andanças infindáveis, ir adiante era tudo o que então conseguíamos fazer.
No meio do caminho, a dona da pousada apareceu. Descalça, ela camuflava-se por entre troncos e folhas secas, numa agilidade exclusiva de quem já não distingue mais a sola dos pés da terra aonde pisa. Como toda criança, ela tinha os pés no chão.
 Mostrou-nos a cabana, por entre inúmeras recomendações ecológicas, que iam desde “sejam ávaros com os recursos da Terra”, até “não se assustem se vocês encontrarem pequenos ratinhos ou animais peçonhentos”. Mas, de verdade, o que escutávamos eram ecos distantes. Instante de um silêncio oco, oco eco, enquanto girávamos todinhos em 360˚: pupilas, pescoços, cabeças, troncos. Era tanta coisa pra olhar, que a visão atrofiou os outros sentidos.
Por entre galhos e areias e folhas e céus, erguia-se uma pequena cabana, com um ar infantil de casa de árvore ou de João e Maria. Era uma casa de doces, uma casa de sonhos. Do chão ao teto, as palhas erguiam o impossível, rodeadas por folhas secas que farfalhavam e nos chiavam, sussurrantes: “o sonho tem cor marrom”.
Deixamos nossos pesos no quarto e largamos pra trás os chinelos, com sorrisos incrédulos de quem se julga num sonho. Largamos tudo e seguimos em frente, rumo a um chiado rítmico, com gosto morno e cheiro de sal. Logo achamos uma portinhola, escondida por entre um arco de folhas. Abrimos o portão – que também podia ser qualquer outro – e avistamos um quadro: a moldura era verde e, à frente, um mangue repousava sobre águas cristalinas e finos grãos de areia.
Demos dois passos e demos de cara com a praia, que era assim, como toda praia deveria ser: silenciosa, límpida, ofuscante  de vazios. Os donos da pousada – ele, paulista; ela, gaúcha – estavam sentados na areia, fumando e contemplando o horizonte, numa terça-feira que bem poderia ser um sábado ou uma segunda.
Por um instante pensei: é assim que tudo deveria ser. E, nesse mesmo instante, tudo fez sentido, naquele Um que era a praia, o casal, o céu, eu e ele. O mundo inteiro estava ali.


segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

PRIMEIRO DIA DO ANO


Ao procurar no google "primeiro de janeiro", eis o que me aparece!

O primeiro dia do ano sempre tem cara de ontem. Peso de um ano inteiro que se materializa em olheiras, em cansaços, em molezas.É o quarto que cheira a champanhe azedo; é a pele que gruda e mela no lençol; é a garganta que reclama por água pra fazer descer um engov entalado no meio. E, enquanto isso, uma cara amassada de ressaca tenta juntar as peças, que se comprimem e latejam na cabeça que dói: ainda ontem era o final do ano, hoje já estamos de novo no início.
A impressão que tenho é que o ano inteiro é uma brincadeira de criança, mas que no primeiro dia estamos de “altus”*. Retrospectivas do ano que passou, metas pro ano que começa... Como angustia parar e olhar pra trás ou pra frente! Parece sempre que algo está desajustado. Que os ponteiros do relógio estão errados. Um ano passado que não foi bem como queríamos, um ano que vem já temeroso por não corresponder ao que dele planejamos.
Aliás, agora emendo: o primeiro dia do ano não tem só cara de ontem – ele também tem cara de amanhã. Um amanhã com o peso de um ano inteiro. Ah, como pesa o primeiro de janeiro! Sempre a fugir da gente, TUDO O QUE ELE NÃO TEM É CARA DE HOJE.
Fotos bonitas, roupas brancas, viagens, fogos, champanhe. Existe toda uma papagaiada que precede a virada do ano e que perdura durante o primeiro dia que chega. Porém, como acontece com qualquer papagaiada, ela só serve de disfarce, pra esconder o que realmente importa. Pois, enquanto nos ocupamos desse ritual, o “hoje” nos escapa, tal qual numa brincadeira de esconde-esconde.
Não quero, no entanto, que me levem a mal. Adoro as breguices das sete ondas, do beijo na hora da virada, de ver os fogos com os pés na areia. Porém, a pergunta que realmente importa é: para além de tudo isso, o que fica desse ritual? Como fazer para ele não nos escapar e cair no vazio? Ou ainda, como fazer pra que, de primeiro de janeiro, ele não se transforme em primeiro de abril - mera convenção ou caô social, o primeiro da largada de 365 outros que estão por vir?
Pensando bem, tudo isso é muito estranho: fazemos promessas para um ano inteiro e, no dia mesmo em que o fazemos, já corremos o risco de começarmos o ano desobedecendo o único plano que realmente importa. Plano que não está nos planos, e que se resume a uma única palavra: VIDA.
Uma vida que só se faz no hoje, longe de qualquer moralismo de recompensas de um Papai Noel ou do além de um outro mundo. Sua ética é a da alegria, e não a da culpa, pois é disso, afinal, que precisamos. Uma vida que inclui infinitos caminhos, infinitas possibilidades.
Como diz o livro que tô lendo**, não há caminhos certos ou errados, mas somente caminhos com ou sem coração. É esse aliás o único plano, a única meta: traçar um caminho com coração. Caminho que não espera, que não adia, que não se planeja – ele se faz a cada instante, 365 dias por ano. Nele, não há pausas para retrospectivas ou planejamentos, mas somente fluxos incessantes, sem “altus”, férias ou recessos.
Emagrecer? Entrar menos no facebook? Economizar dinheiro? Escrever um blog? Nada disso realmente importa. Afinal, em terrenos de obrigações, o coração passa longe.
O que fazemos então? A única saída, oras, é viver. Mergulhar no fluxo de vida, que só se faz com coração. Mergulhar fundo, seguir sua maré, desejar suas águas e, sempre que possível, espiar um pouquinho, ter ao menos uma vaga noção do caminho que rumamos.
São esses meus planos para 2013. E os seus?

*Expressão infantil que quer dizer "pausa" durante alguma brincadeira.
** O livro é do Carlos Castañeda, e se chama "A Erva do Diabo" (Editora Nova Era, 1968). Recomendadíssimo!