segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Mapas

Mapas não rasgam nas pontas
E sim por dentro.
No emaranhado de suas entradas,
De tanto cutucar,
Entranhas furam bem no meio.
Existe algo mais citadino?

Pelas ruas, sou GPS
Eu, um ponto,
O destino, outro.
Calculo distâncias, quadras, metros
Guardo a matemática

Pras desimportâncias da vida.


quarta-feira, 25 de junho de 2014

Da janela de casa

            Estou de casa nova já faz um ano. Desde então, pouco olhei pela janela. Não sou curiosa com os quadradinhos vizinhos, não conheço as sombras no muro à frente, não me familiarizei com o sinal de trânsito na esquina. De quanto em quanto tempo ele abre e fecha? Mal reparo nos galhos da árvore, quase extensão de casa – será que abrigam ninhos de passarinho? Durante o dia, será que morcegos se penduram nela, sonos de ponta cabeça? Na quina da janela, tem uma pracinha, mas pouco me delicio com pedaços de pernas e de vozes – pedaços de vida!  - que brincam por lá.
       Na minha casa antiga, onde cresci, meu espaço preferido era a varanda. Testemunha de intermináveis divagações, lá era meu refúgio sempre que algo me inquietava. Deitava na rede e, com esperanças adolescentes, mirava o Cristo Redentor, ilustre vizinho, a espera por respostas. E não é que elas sempre vinham? Conhecia bem as árvores. Quando uma era podada, estranhava a nova paisagem. Observava as casas ao redor e me perguntava como eram por dentro. Apreciava a dança dos pássaros, e imaginava que os galhos eram ruas e as árvores, cidades. Teve uma época em que cheguei mesmo a abrigar em casa um pequeno passarinho, nascido na varanda e de asas ainda vacilantes.
            Ah! Como era bom o tempo em que sabíamos a arte do não fazer nada! Em assuntos de ócio, a criança é mestre maior. Já hoje... até a preguiça é paga e se chama férias na Bahia, uma vez por ano e olhe lá. Mas e cadê o ócio de casa? Não aquele da TV, que hipnotiza e embriaga, mas sim o da janela, que apazigua e dá respostas? Da varanda onde cresci, já não consigo distinguir a mim de meus devaneios ao pé do Cristo – eles constituem uma parte importante do que sou hoje. É preciso o vazio para que dele saltem estrelas.
            Lembro-me da primeira vez em que entrei no meu atual apartamento. Assim que cheguei ao quarto, a janela me ofuscou tanto a vista que não reparei em mais nada. Imponente, ela é dessas que não se fazem mais hoje em dia: sua extensão toma uma parede inteira; em altura, o teto é o limite. Do lado de lá, uma Amendoeira cor de Brasil quase invade o quarto, enquanto suas folhas sussurram um pedido de amizade: seria ela minha nova confidente?

            Hoje, um ano depois, são tantos os afazeres que pouco me sobra para não fazer nada. E o olhar de criança, esquecimento de si e abertura para o mundo, muitas vezes fica guardadinho para momentos de maior saúde e sanidade. Às vezes, em manhãs sem despertador ou sobrancelha franzida, ele dá o ar de sua graça. Ainda deitada na cama, espreguiço-me até a ponta do mundo e, com a barriga dos dedos, puxo a cortina e espio o dia. Por entre os verdes de minha amiga Amendoeira, entrevejo retalhos azuis, desses que prometem alegria. Suas folhas brilham pedaços de sol. Com carinho, me cutucam: “Ei, você! Tem criança aí dentro!”.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Livros, bambinos e Itália

Como toda aventura, esta começou com uma curiosidade, dessas típicas das almas quando se pretendem investigadoras. Diariamente, conto histórias para crianças, todas brasileirinhas e engatinhando no novo velho português. Como seria, porém, contar histórias nossas para bambinos do Velho Continente? Seus olhinhos brilhariam, como brilham os daqui? Como seus pequenos ouvidos receberiam o português? Como um carinho? Ou um zumbido de mosquito?
Nosso mergulho nas águas dos contos infantis começou na Feira do Livro Infantil de Bolonha. De lá, partimos para Florença com uma pequena grande missão: contar histórias. Nosso grupo, bem variado e um tanto exótico, era uma boa imagem da mistureba brasileira. Sob as asas de nossa querida professora de Literatura Infantil, Ninfa Parreiras, arriscamos nossos primeiros voos, cada um à sua maneira. Tinha escritor, ilustrador, gente nova, gente velha... Gente do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, da Amazônia, de Brasília...
A aventura começou na Bibliotecanova Isolotto, biblioteca pública referência para o povo de lá. Para nós, reservaram a sala de livros infantis, com direito a teclados coloridos, cataventos de papel e engenhocas de sucata. Aliás, um parênteses: cada dia vejo mais que às concepções de criança em cada país correspondem os espaços dedicados a elas. Por lá, criança é sujeito que lê, pensa, constrói. Portanto, cabe a ela não somente lugares de entretenimento ou de consumo, mas também, e arrisco-me a dizer principalmente, espaços de reflexão e de construção de si e do mundo.
Aos poucos, a Biblioteca foi enchendo de tudo quanto é gente. Tinha brasileiro curioso, brasileiro escritor, funcionários da biblioteca, mães e, é claro, muitos bambinos. Começamos nos apresentando, arriscando-nos num italiano rudimentar, como forma de agradecimento e simpatia aos que tão calorosamente nos receberam em sua terra. Em seguida, mergulhamos no universo consagrado da literatura infantil brasileira, com leituras e traduções de monstros como Lygia Bojunga, Ruth Rocha, Joel Rufino dos Santos, Roger Mello, Ziraldo e Marina Colasanti.

Ninfa Parreiras, Otávio Júnior, eu, Ruth Leite e Agostinho Ornellas, na Bibliotecanova Isolotto

Nossa fala terminou com um baita presente: Roger Mello, vencedor do Prêmio Hans Christian Andersen de Ilustração em Bolonha deste ano, o Nobel da Literatura Infantil, estava lá e deu uma palhinha do seu dom. Munido de um pilot preto, começou com simples traços, instigando adivinhações do público mirim. “São montanhas! É uma boca! São orelhas de um coelho!”, arriscavam. Terminado o desenho, um conjunto de bocas escancaradas sob a forma de peixes e tubarões, Roger convocou as crianças, justificando-se: “é que não gosto de desenhar sozinho”. Por entre cotoveladas, os bambinos lutavam por um pequeno espaço no papel, dando à obra vida, muitas cores e diferentes histórias. Ufa, que noite!

Roger Mello, o desenho e as crianças

No dia seguinte, a saga continuou, dessa vez numa livraria infantil, a Libreria Cuccumeo. Aliás, que graça de lugar! Em cada cantinho, um livro, uma história, um aconchego. Era um desses lugares que não dá vontade de ir embora. A livraria lotou, mal tinha espaço para os contadores de histórias. Apesar do espaço apertado, da estranheza da língua e das diferentes idades, os olhinhos mal piscavam ao escutarem brasilidades sob a forma de histórias.

Ninfa Parreiras, eu e nossa tradutora, Adriana Cabral


A impressão que ficou? Tantas horas de voo, tantos euros gastos, tudo rapidamente compensado pelos olhares italianos de encanto e fascínio. Que língua era aquela que sambava, esquentava e aumentava, em ritmo de tambor? Mas que também ninava, sussurrava e diminuía, em ritmo de violão? Língua musicada, língua gestual, que a diretora da Biblioteca logo notou: “Vocês falam com o corpo, enquanto nós falamos com a boca”. Às nossas falas, seguiam as traduções de uma simpática amiga, meio brasileira, meio italiana. E, às traduções, seguiam os inevitáveis sorrisos, desses que uma Bolsa Amarela ou um Menino Maluquinho sempre arrancam. Porque literatura boa é assim: atravessa mares, culturas e gerações. Diz de todos e de cada um de nós.




quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

(de)vagar

 Desconfie do pronto
Comida boa se tempera
Opinião sábia se pondera

Desconfie do rápido
Sexo gostoso se estica
Boa notícia não se fabrica
(ou talvez só um tico)

O que é verdadeiro
Não se fala à toa
Nem se esquece rápido

Se constrói
Aos poucos
Continua ao longo

Nasce de quem pensa
Permanece por quem deseja.