quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Travessura das palavras

Há cerca de um ano, fui convidada a participar de uma antologia de contos sobre o Rio de Janeiro. A ideia era pinçar um fio de cabelo da nossa cidade – uma rua, uma personagem, um monumento. Em meio ao turbilhão carioca, sobre o que escrever? Numa espécie de ruminação à espreita, passei um tempo a farejar novos ares, pescar palavras sem dono.
Enfim, o estalo se deu. Ao entrar no meu prédio, esbarro com um velhinho de uniforme da seleção brasileira, meião, chuteira e bola debaixo do braço. Estatelada na portaria, revisito cenas empoeiradas: da onde conheço essa figura? Rebobino, rebobino, até que... Eureca! Era o velhinho do São Januário e do Maracanã de outros tempos, que passava o intervalo dos jogos entretendo a arquibancada com suas embaixadinhas pelo campo.
Consigo uma entrevista com ele. Papo vai, papo vem e o velhinho das embaixadinhas me mostra diplomas, reportagens, fotografias amareladas. Distraída que sou, me atenho pouco aos documentos - prefiro a travessura de suas palavras. Dentre tantas, uma não parou de ecoar – espécie de sopro a anunciar novos ventos. Era a palavra brincar.
O velhinho substituía o verbo jogar pelo brincar. Brincar de futebol, brincar de embaixadinha – era assim que ele falava. Essa pequena traquinagem me fez lembrar Manoel de Barros, poeta que ao invés de velhice, falava em terceira infância. Uma frase em especial martelou forte: “Tenho 87 anos. Se eu conseguir brincar de futebol até os 90, eu tô feliz”.
Na época, eu trabalhava como educadora infantil, e conheci algumas crianças que não sabiam brincar. Feito pássaro que não voa; cachorro que não late. No pátio, só conversavam com os adultos, sobre temas de gente grande. Das poucas vezes que arriscavam uma brincadeira, lembravam-me executivos de terno e gravata tentando passar por três porquinhos.
            O contraste gritou aos meus ouvidos. Gritou tanto até chegar às mãos, à ponta dos dedos, à página em branco. As palavras deram contorno a Pedrinho, um menino que pesava raízes. “Os membros eram sua língua estrangeira”, escrevi em algum ponto. Se como educadora me pesava os limites da realidade, no texto seria diferente. Eu precisava converter o menino em criança.
            Foi aí que a terceira infância adentrou a página – um bisavô com rugas de brincadeira e risadas de nuvem. Seria possível resistir a uma voz que, bem ao jeito do poeta, falava em língua de ave e de criança? Pra cada leitor, uma resposta. Eu, confesso, já tenho a minha. Afinal, criançar Pedrinho foi meu pequeno jeito de criançar o mundo.



Ps. O conto, intitulado “Rugas de brincadeira”, foi lançado na antologia “Mapas literários – o Rio em histórias”, organizado por Ninfa Parreiras e publicado pela Editora Rovelle.