segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Conversa com o autor

Recentemente, tive o prazer de participar, em conjunto com a Pepita Sampaio, do programa Conversa com o autor, que foi ao ar na rádio MEC AM. 

Idealizado a partir de um projeto da Casa da Leitura, da Fundação Biblioteca Nacional, o programa tem como mediadora a jornalista Katy Navarro, da Casa da Leitura.






Pros interessados, o link é esse:

http://radios.ebc.com.br/conversa-com-o-autor/edicao/2015-10/luisa-benevides-e-pepita-sampaio-no-conversa-com-o-autor

Espero que curtam o programa!

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Travessura das palavras

Há cerca de um ano, fui convidada a participar de uma antologia de contos sobre o Rio de Janeiro. A ideia era pinçar um fio de cabelo da nossa cidade – uma rua, uma personagem, um monumento. Em meio ao turbilhão carioca, sobre o que escrever? Numa espécie de ruminação à espreita, passei um tempo a farejar novos ares, pescar palavras sem dono.
Enfim, o estalo se deu. Ao entrar no meu prédio, esbarro com um velhinho de uniforme da seleção brasileira, meião, chuteira e bola debaixo do braço. Estatelada na portaria, revisito cenas empoeiradas: da onde conheço essa figura? Rebobino, rebobino, até que... Eureca! Era o velhinho do São Januário e do Maracanã de outros tempos, que passava o intervalo dos jogos entretendo a arquibancada com suas embaixadinhas pelo campo.
Consigo uma entrevista com ele. Papo vai, papo vem e o velhinho das embaixadinhas me mostra diplomas, reportagens, fotografias amareladas. Distraída que sou, me atenho pouco aos documentos - prefiro a travessura de suas palavras. Dentre tantas, uma não parou de ecoar – espécie de sopro a anunciar novos ventos. Era a palavra brincar.
O velhinho substituía o verbo jogar pelo brincar. Brincar de futebol, brincar de embaixadinha – era assim que ele falava. Essa pequena traquinagem me fez lembrar Manoel de Barros, poeta que ao invés de velhice, falava em terceira infância. Uma frase em especial martelou forte: “Tenho 87 anos. Se eu conseguir brincar de futebol até os 90, eu tô feliz”.
Na época, eu trabalhava como educadora infantil, e conheci algumas crianças que não sabiam brincar. Feito pássaro que não voa; cachorro que não late. No pátio, só conversavam com os adultos, sobre temas de gente grande. Das poucas vezes que arriscavam uma brincadeira, lembravam-me executivos de terno e gravata tentando passar por três porquinhos.
            O contraste gritou aos meus ouvidos. Gritou tanto até chegar às mãos, à ponta dos dedos, à página em branco. As palavras deram contorno a Pedrinho, um menino que pesava raízes. “Os membros eram sua língua estrangeira”, escrevi em algum ponto. Se como educadora me pesava os limites da realidade, no texto seria diferente. Eu precisava converter o menino em criança.
            Foi aí que a terceira infância adentrou a página – um bisavô com rugas de brincadeira e risadas de nuvem. Seria possível resistir a uma voz que, bem ao jeito do poeta, falava em língua de ave e de criança? Pra cada leitor, uma resposta. Eu, confesso, já tenho a minha. Afinal, criançar Pedrinho foi meu pequeno jeito de criançar o mundo.



Ps. O conto, intitulado “Rugas de brincadeira”, foi lançado na antologia “Mapas literários – o Rio em histórias”, organizado por Ninfa Parreiras e publicado pela Editora Rovelle.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

A empadinha e o Coelho

No combate entre você e o mundo, prefira o mundo.
Franz Kafka

Já tem um tempo que faço parte de um grupo de estudos de literatura em Santa Teresa. Na primeira vez que fui lá, me explicaram como seria: “Lemos um trecho de um livro, mas antes dedicamos um tempinho pro ‘feito à mão’”. Não entendi o que seria aquilo, mas não quis perguntar. Preferi preservar o mistério daquela expressão um tanto quanto em desuso: “feito à mão”. Parecia até uma palavra só – palavra caseira com cheiro de bolo de fubá.
A nerd dentro de mim se preparou direitinho: comprou o livro, leu, sublinhou. Separou caderno, estojo e até marca-texto. Com cara de blazer, pegou um taxi na Lagoa. No engarrafamento das 18h, quase pôde ver o Coelho da Alice correndo entre os carros, de relógio nas mãos e sobrancelhas franzidas. Eu era o próprio Coelho. Ou talvez o relógio. Ou ainda as sobrancelhas. Que diferença faz?
Finalmente, o taxista pega o Túnel Rebouças e sobe o morro pelo Cosme Velho. Sem me dar conta, o Coelho desaparece. A sobrancelha franzida escorre pros lábios, desembocando num sorriso fresco que se perde no tempo. Como quem olha pra si numa foto antiga, contemplo, “de cima e benevolente, tudo que é novidade, modernidade e barulhidade que rolava nos baixos”[i].
Enfim, chego à casa: casa-vó com rugas de tempo e jardineiras floridas. Das janelas coloniais, vê-se Rio pra tudo que é lado, “exibindo mar e baía e montanha e cidade pra gente olhar”[ii].
Sento-me à mesa – daquelas enormes de madeira, de quem não tem pressa pra comer. Está na hora do “feito à mão”. Empadinhas de doce de leite, chá de amora, pães caseiros dos mais variados grãos, caponata de berinjela. Tudo tecido por mãos familiares e mastigado entre vozes femininas – vozes que falam de botões, de cadernos, de louças. Vozes que riem do tempo lá embaixo, como quem diz: “preciso de uma trégua de ti”.
Intrigo-me com as vozes – é um intrigar gostoso, de quem fecha os olhos e se deixa saborear por elas. Mas tem algo em minha garganta que me obstrui a voz, impedindo-a de se embolar com as demais. Olho pra dentro e descubro o intruso – o Coelho da Alice estava lá, empacado, me empacando.
“Ei, você!”, ele me chamou lá de dentro. “Cadê o estudo que não começa? Esse engarrafamento todo foi só pra jogar conversa fora?”
Ainda bem que a voz do Coelho era fraca – estava mais pra uma coceira do que pra um trombone. Assim que me dei conta pra onde aquela conversa me levaria, encarei seus olhos vermelhos a me fitarem no escuro da garganta, e disse cuspido:
“Senhor Coelho que não pode perder tempo, ‘que tem sempre de aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem de seguir o passo veloz do que passa, que não pode ficar pra trás’[iii]. Senhor Coelho, você já não tem tempo dentro de mim”.
Ainda em tempo, fiz o Coelho calar a boca e ser digerido junto a uma bela dentada na empadinha de doce de leite.







[i] Este trecho é do livro “O Rio e eu”, de Lygia Bojunga, no qual a autora fala de seu amor à primeira vista – e à segunda, e à terceira – com Santa Teresa.
[ii] Idem.
[iii] Esta passagem é de um texto que fala sobre a experiência e dificuldade de experimentarmos qualquer coisa no mundo corrido contemporâneo. Chama-se “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”, e é da autoria de Jorge Larrosa Bondía.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A dignidade da desobediência[i]


Eram tempos de Primeira Comunhão. Eu tinha dez anos, estudava em escola católica e não tinha ideia do significado do ritual. Fizemos um curso preparatório que explicava tudo direitinho. Mas, pra ser sincera, eu só pensava no gosto da hóstia. Seria doce ou salgada? Molinha ou crocante? Gulosa de nascença, imaginava como seria um pão bem fininho se dissolvendo no céu da boca.
No dia do ritual, veio a família toda. Não entendi o alvoroço, mas gostei da atenção. Minha mãe mandou fazer na costureira a roupa branca: conjuntinho de saia no joelho e blusa de botão, com rendinhas nas mangas e nas barras. Meia calça e sapato branco. Pela primeira vez, fui ao salão fazer as unhas e o cabelo. “Não tira a cutícula, tá?”, mamãe pediu à manicure. Não sabia o que era cutícula, mas não esquentei. Cada coisa a seu tempo. Naquele sábado, eu já galgara importantes degraus do mundo adulto.
Dizem que o melhor da festa é esperar por ela. E este certamente foi o caso. Dos preparativos, aliás, o evento mais marcante foi minha primeira confissão. “Para comungar”, disse o padre, “é preciso confessar antes”. Não entendi a conexão, mas também não estranhei. Afinal, quando se tem dez anos, tudo é possível; qualquer caminho é natural. 
(Li, certa vez, que se uma criança vê o pai voando na cozinha, exclama com naturalidade: “Olha o papai voando!”. Já um adulto... Cai morto, desmaia, para num hospício)[ii].
Voltando à confissão. A igreja, da escola, era escura e de sinistros rumores: diziam as más línguas que a santa até mexia (e dizia-se tanto que a coordenadora, certa vez, teve que ir de sala em sala desmentindo o boato). Por via das dúvidas, entrei na igreja desviando o olhar. O coração, pequenino, rebentava o peito.
- Luisa Benevides, o padre chamou.
Era minha vez de confessar.
Esta é, talvez, uma das lembranças mais escuras que tenho. Por entre uma renda de madeira, o padre ordenou que declarasse meus crimes. “Que nervoso, não poder ver com quem converso”, pensei. Mas se é assim, é assim. Na véspera, havia ensaiado minha breve confissão que, na hora, breveou ainda mais:
- Brigo-muito-com-meu-irmão – disse, sem respirar.
- Cinco Pai Nossos e cinco Ave Marias.
“Então é só isso?”, aliviei. Que maravilha ser cristã! Depois de rezar, podia até brigar de novo: em dez anos, rezava mais cinco de cada e pronto. Com passos de algodão, já ia ajoelhando quando... Peraí, alguma coisa não estava certa: não revelara todo o meu delito.
Senti a culpa na garganta: eu mentira ao padre. Pela primeira vez, o chumbo do pecado vomitava o peito. Seria aquele meu ingresso ao mundo adulto? Divisa do paraíso perdido? Sombras de nuvem escureceram as sobrancelhas.
Olhei pro confessionário: vazio. Ainda dava tempo...
Voltei correndo; o coração aos tropeços. A lista alfabética dos pecadores prosseguia, mas o padre tinha que me escutar.
- Padre-eu-não-contei-tudo. – disse num sopro só, que era pra culpa não rolar boca afora.
Silêncio. Do outro lado, ele preparou a orelha, quase vitorioso: a culpa justificava o ofício. Pronto pra terrível confidência, mandou-me prosseguir.
E eu, ah! Tão pesada sem saber-me tão leve, revelei, ignorando a beleza e a dignidade de minha desobediência:
- Roubei-dois-bubbaloos-nas-Lojas-Americanas.








[i] Tirei esta expressão do livro que estou lendo agora: “O livro dos abraços”, de Eduardo Galeano.
[ii] Li este trecho aos 14 anos e nunca mais esqueci. Trata-se do livro “O mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder.