E então eu deixei para trás diários adolescentes, fotos de amores
antigos, bilhetes de amigas, livros já lidos e relidos. Deixei para trás minha
cama de criança, ursos de pelúcia, desenhos e anotações amareladas. À noite,
não escuto mais meu pai tocando violão, e muito menos a tão esperada frase,
sempre às oito em ponto: “o jantar tá na mesa!”. Não tenho mais meu irmão no
quarto ao lado, e nem a minha melhor amiga me gritando da janela de cima.
Também não tenho mais um rio (sim, um rio de verdade!), passando do lado de
casa e embalando meus sonos de todas as noites.
Hoje já vejo essas páginas como capítulos de um livro lido até um certo
ponto – o restante ainda está em branco. Sei – e sinto – muito bem o que deixei
para trás, mas ainda desconheço o que me aguarda pela frente.
Os mais amargurados diriam: “daqui pra frente, só conta pra pagar,
comida pra fazer, casa pra limpar. Casamento no começo é bom, mas depois
esfria. Homem não ajuda em casa, vai se acostumando. Quando vem os filhos, a
coisa piora. A mulher não tem tempo pra mais nada”. Palavras resignadas, frases
prontas. E o famoso “não tem jeito” sempre lá, a tentar em vão amenizar a culpa
de uma vida mal vivida.
Não, eu não quero frases prontas. Minha vida não são contas pra pagar.
Também não quero as páginas gastas de um livro que já conheço de cor. Minha
vida não é o conforto do jantar às oito.
Quero a vida das páginas em branco, dos diários rasgados, das fotos que
ficam pra trás. Quero a doce lembrança do meu pai no violão, mas apenas por
alguns minutos: depois o que eu quero são os novos barulhos, as novas músicas.
Barulho do portão – é ele chegando!, da nova frase tão esperada: “querida,
cheguei!”, do pássaro que sempre pia à noite, do caminhão de lixo que passa de
madrugada, do burburinho das visitas. Quero o barulho da minha coluna estalando toda com o abraço dele,
vértebra por vértebra, até eu desmanchar por inteiro nos seus braços.
Quero esses e outros barulhos. Mas não quero só barulhos. Também quero o
silêncio da casa vazia, da minha casa, só pra mim. Quero pintar paredes, pregar
quadros, comprar tapetes. Quero que meus pais provem o meu café. Quero jantar às duas da manhã, inventar o que
vou comer, o que vou limpar, o que vou bagunçar. Quero amigos no sofá, no chão,
na cozinha. E que cheguem sem avisar. Quero também não querer nada, deitar e
rolar, viver e ver no que dá.
E foi assim, aliás, meio sem querer nada, de mansinho, que hoje vejo no
que deu: ganhei uma nova família. Família de dois, sem hierarquia, escolhida
por mim e por ele. Família mutante, em eterna construção: tem vezes que devenho
mulher, em outras devenho mãe, filha, criança, irmã, amiga. Tem vezes ainda que
nem sei no que devenho – e, curioso!, são esses os melhores momentos.
Tem gente que junta tudo isso num saco só e diz, numa espécie de resumo
prático: “pronto, você virou adulta”. Palavras de tijolo, em preto e branco, às
quais eu prefiro opor: não, eu não virei adulta. Virei gente grande. E, ainda
assim, só de vez em quando.