Há cerca de um ano, fui convidada a participar de uma antologia de
contos sobre o Rio de Janeiro. A ideia era pinçar um fio de cabelo da nossa
cidade – uma rua, uma personagem, um monumento. Em meio ao turbilhão carioca,
sobre o que escrever? Numa espécie de ruminação à espreita, passei um tempo a
farejar novos ares, pescar palavras sem dono.
Enfim, o estalo se deu. Ao entrar no meu prédio, esbarro com um velhinho
de uniforme da seleção brasileira, meião, chuteira e bola debaixo do braço.
Estatelada na portaria, revisito cenas empoeiradas: da onde conheço essa
figura? Rebobino, rebobino, até que... Eureca! Era o velhinho do São Januário e
do Maracanã de outros tempos, que passava o intervalo dos jogos entretendo a
arquibancada com suas embaixadinhas pelo campo.
Consigo uma entrevista com ele. Papo vai, papo vem e o velhinho das
embaixadinhas me mostra diplomas, reportagens, fotografias amareladas.
Distraída que sou, me atenho pouco aos documentos - prefiro a travessura de suas
palavras. Dentre tantas, uma não parou de ecoar – espécie de sopro a anunciar
novos ventos. Era a palavra brincar.
O velhinho substituía o verbo jogar
pelo brincar. Brincar de futebol, brincar de
embaixadinha – era assim que ele falava. Essa pequena traquinagem me fez
lembrar Manoel de Barros, poeta que ao invés de velhice, falava em terceira
infância. Uma frase em especial martelou forte: “Tenho 87 anos. Se eu conseguir
brincar de futebol até os 90, eu tô
feliz”.
Na época, eu trabalhava como educadora infantil, e conheci algumas crianças
que não sabiam brincar. Feito pássaro que não voa; cachorro que não late. No
pátio, só conversavam com os adultos, sobre temas de gente grande. Das poucas
vezes que arriscavam uma brincadeira, lembravam-me executivos de terno e
gravata tentando passar por três porquinhos.
O contraste gritou aos meus ouvidos.
Gritou tanto até chegar às mãos, à ponta dos dedos, à página em branco. As
palavras deram contorno a Pedrinho, um menino que pesava raízes. “Os membros
eram sua língua estrangeira”, escrevi em algum ponto. Se como educadora me
pesava os limites da realidade, no texto seria diferente. Eu precisava
converter o menino em criança.
Foi aí que a terceira infância
adentrou a página – um bisavô com rugas de brincadeira e risadas de nuvem.
Seria possível resistir a uma voz que, bem ao jeito do poeta, falava em língua de ave e de criança? Pra
cada leitor, uma resposta. Eu, confesso, já tenho a minha. Afinal, criançar
Pedrinho foi meu pequeno jeito de criançar o mundo.
Ps. O conto, intitulado “Rugas de brincadeira”, foi
lançado na antologia “Mapas literários – o Rio em histórias”, organizado por Ninfa Parreiras e publicado pela Editora Rovelle.