No combate entre você
e o mundo, prefira o mundo.
Franz Kafka
Já tem um tempo que faço parte de um grupo de estudos de literatura em
Santa Teresa. Na primeira vez que fui lá, me explicaram como seria: “Lemos um
trecho de um livro, mas antes dedicamos um tempinho pro ‘feito à mão’”. Não
entendi o que seria aquilo, mas não quis perguntar. Preferi preservar o
mistério daquela expressão um tanto quanto em desuso: “feito à mão”. Parecia
até uma palavra só – palavra caseira com cheiro de bolo de fubá.
A nerd dentro de mim se
preparou direitinho: comprou o livro, leu, sublinhou. Separou caderno, estojo e
até marca-texto. Com cara de blazer, pegou um taxi na Lagoa. No engarrafamento
das 18h, quase pôde ver o Coelho da Alice correndo entre os carros, de relógio
nas mãos e sobrancelhas franzidas. Eu era o próprio Coelho. Ou talvez o
relógio. Ou ainda as sobrancelhas. Que diferença faz?
Finalmente, o taxista pega o Túnel Rebouças e sobe o morro pelo Cosme
Velho. Sem me dar conta, o Coelho desaparece. A sobrancelha franzida escorre pros
lábios, desembocando num sorriso fresco que se perde no tempo. Como quem olha pra
si numa foto antiga, contemplo, “de cima e benevolente, tudo que é novidade,
modernidade e barulhidade que rolava nos baixos”[i].
Enfim, chego à casa: casa-vó com rugas de tempo e jardineiras floridas. Das
janelas coloniais, vê-se Rio pra tudo que é lado, “exibindo mar e baía e
montanha e cidade pra gente olhar”[ii].
Sento-me à mesa – daquelas enormes de madeira, de quem não tem pressa
pra comer. Está na hora do “feito à mão”. Empadinhas de doce de leite, chá de
amora, pães caseiros dos mais variados grãos, caponata de berinjela. Tudo
tecido por mãos familiares e mastigado entre vozes femininas – vozes que
falam de botões, de cadernos, de louças. Vozes que riem do tempo lá embaixo,
como quem diz: “preciso de uma trégua de ti”.
Intrigo-me com as vozes – é um intrigar gostoso, de quem fecha os olhos
e se deixa saborear por elas. Mas tem algo em minha garganta que me obstrui a
voz, impedindo-a de se embolar com as demais. Olho pra dentro e descubro o intruso
– o Coelho da Alice estava lá, empacado, me empacando.
“Ei, você!”, ele me chamou lá de dentro. “Cadê o estudo que não começa?
Esse engarrafamento todo foi só pra jogar conversa fora?”
Ainda bem que a voz do Coelho era fraca – estava mais pra uma coceira do
que pra um trombone. Assim que me dei conta pra onde aquela conversa me levaria,
encarei seus olhos vermelhos a me fitarem no escuro da garganta, e disse
cuspido:
“Senhor Coelho que não pode perder tempo, ‘que tem sempre de aproveitar
o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem de seguir o passo veloz
do que passa, que não pode ficar pra trás’[iii].
Senhor Coelho, você já não tem tempo dentro de mim”.
Ainda em tempo, fiz o Coelho calar a boca e ser digerido junto a uma
bela dentada na empadinha de doce de leite.
[i] Este trecho é do livro “O Rio e eu”,
de Lygia Bojunga, no qual a autora fala de seu amor à primeira vista – e à
segunda, e à terceira – com Santa Teresa.
[ii] Idem.
[iii] Esta passagem é de um texto que fala
sobre a experiência e dificuldade de experimentarmos qualquer coisa no mundo
corrido contemporâneo. Chama-se “Notas sobre a experiência e o saber de
experiência”, e é da autoria de Jorge Larrosa Bondía.
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