Eram tempos de Primeira Comunhão. Eu tinha dez anos, estudava em escola
católica e não tinha ideia do significado do ritual. Fizemos um curso
preparatório que explicava tudo direitinho. Mas, pra ser sincera, eu só pensava
no gosto da hóstia. Seria doce ou salgada? Molinha ou crocante? Gulosa de
nascença, imaginava como seria um pão bem fininho se dissolvendo no céu da
boca.
No dia do ritual, veio a família toda. Não entendi o alvoroço, mas
gostei da atenção. Minha mãe mandou fazer na costureira a roupa branca: conjuntinho
de saia no joelho e blusa de botão, com rendinhas nas mangas e nas barras. Meia
calça e sapato branco. Pela primeira vez, fui ao salão fazer as unhas e o
cabelo. “Não tira a cutícula, tá?”, mamãe pediu à manicure. Não sabia o que era
cutícula, mas não esquentei. Cada coisa a seu tempo. Naquele sábado, eu
já galgara importantes degraus do mundo adulto.
Dizem que o melhor da festa é esperar por ela. E este certamente foi o
caso. Dos preparativos, aliás, o evento mais marcante foi minha primeira
confissão. “Para comungar”, disse o padre, “é preciso confessar antes”. Não
entendi a conexão, mas também não estranhei. Afinal, quando se tem dez anos, tudo
é possível; qualquer caminho é natural.
(Li, certa vez, que se uma criança vê o
pai voando na cozinha, exclama com naturalidade: “Olha o papai voando!”. Já um
adulto... Cai morto, desmaia, para num hospício)[ii].
Voltando à confissão. A igreja, da escola, era escura e de sinistros
rumores: diziam as más línguas que a santa até mexia (e dizia-se tanto que a
coordenadora, certa vez, teve que ir de sala em sala desmentindo o boato). Por
via das dúvidas, entrei na igreja desviando o olhar. O coração, pequenino,
rebentava o peito.
- Luisa Benevides, o padre chamou.
Era minha vez de confessar.
Esta é, talvez, uma das lembranças mais escuras que tenho. Por entre uma
renda de madeira, o padre ordenou que declarasse meus crimes. “Que nervoso, não
poder ver com quem converso”, pensei. Mas se é assim, é assim. Na véspera,
havia ensaiado minha breve confissão que, na hora, breveou ainda mais:
- Brigo-muito-com-meu-irmão – disse, sem respirar.
- Cinco Pai Nossos e cinco Ave Marias.
“Então é só isso?”, aliviei. Que maravilha ser cristã! Depois de rezar,
podia até brigar de novo: em dez anos, rezava mais cinco de cada e pronto. Com
passos de algodão, já ia ajoelhando quando... Peraí, alguma coisa não estava
certa: não revelara todo o meu delito.
Senti a culpa na garganta: eu mentira ao padre. Pela primeira vez, o
chumbo do pecado vomitava o peito. Seria aquele meu ingresso ao mundo adulto? Divisa
do paraíso perdido? Sombras de nuvem escureceram as sobrancelhas.
Olhei pro confessionário: vazio. Ainda dava tempo...
Voltei correndo; o coração aos tropeços. A lista alfabética dos pecadores
prosseguia, mas o padre tinha que me escutar.
- Padre-eu-não-contei-tudo. – disse num sopro só, que era pra culpa não
rolar boca afora.
Silêncio. Do outro lado, ele preparou a orelha, quase vitorioso: a culpa
justificava o ofício. Pronto pra terrível confidência, mandou-me prosseguir.
E eu, ah! Tão pesada sem saber-me tão leve, revelei, ignorando a beleza
e a dignidade de minha desobediência:
- Roubei-dois-bubbaloos-nas-Lojas-Americanas.
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