sexta-feira, 28 de agosto de 2015

A empadinha e o Coelho

No combate entre você e o mundo, prefira o mundo.
Franz Kafka

Já tem um tempo que faço parte de um grupo de estudos de literatura em Santa Teresa. Na primeira vez que fui lá, me explicaram como seria: “Lemos um trecho de um livro, mas antes dedicamos um tempinho pro ‘feito à mão’”. Não entendi o que seria aquilo, mas não quis perguntar. Preferi preservar o mistério daquela expressão um tanto quanto em desuso: “feito à mão”. Parecia até uma palavra só – palavra caseira com cheiro de bolo de fubá.
A nerd dentro de mim se preparou direitinho: comprou o livro, leu, sublinhou. Separou caderno, estojo e até marca-texto. Com cara de blazer, pegou um taxi na Lagoa. No engarrafamento das 18h, quase pôde ver o Coelho da Alice correndo entre os carros, de relógio nas mãos e sobrancelhas franzidas. Eu era o próprio Coelho. Ou talvez o relógio. Ou ainda as sobrancelhas. Que diferença faz?
Finalmente, o taxista pega o Túnel Rebouças e sobe o morro pelo Cosme Velho. Sem me dar conta, o Coelho desaparece. A sobrancelha franzida escorre pros lábios, desembocando num sorriso fresco que se perde no tempo. Como quem olha pra si numa foto antiga, contemplo, “de cima e benevolente, tudo que é novidade, modernidade e barulhidade que rolava nos baixos”[i].
Enfim, chego à casa: casa-vó com rugas de tempo e jardineiras floridas. Das janelas coloniais, vê-se Rio pra tudo que é lado, “exibindo mar e baía e montanha e cidade pra gente olhar”[ii].
Sento-me à mesa – daquelas enormes de madeira, de quem não tem pressa pra comer. Está na hora do “feito à mão”. Empadinhas de doce de leite, chá de amora, pães caseiros dos mais variados grãos, caponata de berinjela. Tudo tecido por mãos familiares e mastigado entre vozes femininas – vozes que falam de botões, de cadernos, de louças. Vozes que riem do tempo lá embaixo, como quem diz: “preciso de uma trégua de ti”.
Intrigo-me com as vozes – é um intrigar gostoso, de quem fecha os olhos e se deixa saborear por elas. Mas tem algo em minha garganta que me obstrui a voz, impedindo-a de se embolar com as demais. Olho pra dentro e descubro o intruso – o Coelho da Alice estava lá, empacado, me empacando.
“Ei, você!”, ele me chamou lá de dentro. “Cadê o estudo que não começa? Esse engarrafamento todo foi só pra jogar conversa fora?”
Ainda bem que a voz do Coelho era fraca – estava mais pra uma coceira do que pra um trombone. Assim que me dei conta pra onde aquela conversa me levaria, encarei seus olhos vermelhos a me fitarem no escuro da garganta, e disse cuspido:
“Senhor Coelho que não pode perder tempo, ‘que tem sempre de aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem de seguir o passo veloz do que passa, que não pode ficar pra trás’[iii]. Senhor Coelho, você já não tem tempo dentro de mim”.
Ainda em tempo, fiz o Coelho calar a boca e ser digerido junto a uma bela dentada na empadinha de doce de leite.







[i] Este trecho é do livro “O Rio e eu”, de Lygia Bojunga, no qual a autora fala de seu amor à primeira vista – e à segunda, e à terceira – com Santa Teresa.
[ii] Idem.
[iii] Esta passagem é de um texto que fala sobre a experiência e dificuldade de experimentarmos qualquer coisa no mundo corrido contemporâneo. Chama-se “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”, e é da autoria de Jorge Larrosa Bondía.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A dignidade da desobediência[i]


Eram tempos de Primeira Comunhão. Eu tinha dez anos, estudava em escola católica e não tinha ideia do significado do ritual. Fizemos um curso preparatório que explicava tudo direitinho. Mas, pra ser sincera, eu só pensava no gosto da hóstia. Seria doce ou salgada? Molinha ou crocante? Gulosa de nascença, imaginava como seria um pão bem fininho se dissolvendo no céu da boca.
No dia do ritual, veio a família toda. Não entendi o alvoroço, mas gostei da atenção. Minha mãe mandou fazer na costureira a roupa branca: conjuntinho de saia no joelho e blusa de botão, com rendinhas nas mangas e nas barras. Meia calça e sapato branco. Pela primeira vez, fui ao salão fazer as unhas e o cabelo. “Não tira a cutícula, tá?”, mamãe pediu à manicure. Não sabia o que era cutícula, mas não esquentei. Cada coisa a seu tempo. Naquele sábado, eu já galgara importantes degraus do mundo adulto.
Dizem que o melhor da festa é esperar por ela. E este certamente foi o caso. Dos preparativos, aliás, o evento mais marcante foi minha primeira confissão. “Para comungar”, disse o padre, “é preciso confessar antes”. Não entendi a conexão, mas também não estranhei. Afinal, quando se tem dez anos, tudo é possível; qualquer caminho é natural. 
(Li, certa vez, que se uma criança vê o pai voando na cozinha, exclama com naturalidade: “Olha o papai voando!”. Já um adulto... Cai morto, desmaia, para num hospício)[ii].
Voltando à confissão. A igreja, da escola, era escura e de sinistros rumores: diziam as más línguas que a santa até mexia (e dizia-se tanto que a coordenadora, certa vez, teve que ir de sala em sala desmentindo o boato). Por via das dúvidas, entrei na igreja desviando o olhar. O coração, pequenino, rebentava o peito.
- Luisa Benevides, o padre chamou.
Era minha vez de confessar.
Esta é, talvez, uma das lembranças mais escuras que tenho. Por entre uma renda de madeira, o padre ordenou que declarasse meus crimes. “Que nervoso, não poder ver com quem converso”, pensei. Mas se é assim, é assim. Na véspera, havia ensaiado minha breve confissão que, na hora, breveou ainda mais:
- Brigo-muito-com-meu-irmão – disse, sem respirar.
- Cinco Pai Nossos e cinco Ave Marias.
“Então é só isso?”, aliviei. Que maravilha ser cristã! Depois de rezar, podia até brigar de novo: em dez anos, rezava mais cinco de cada e pronto. Com passos de algodão, já ia ajoelhando quando... Peraí, alguma coisa não estava certa: não revelara todo o meu delito.
Senti a culpa na garganta: eu mentira ao padre. Pela primeira vez, o chumbo do pecado vomitava o peito. Seria aquele meu ingresso ao mundo adulto? Divisa do paraíso perdido? Sombras de nuvem escureceram as sobrancelhas.
Olhei pro confessionário: vazio. Ainda dava tempo...
Voltei correndo; o coração aos tropeços. A lista alfabética dos pecadores prosseguia, mas o padre tinha que me escutar.
- Padre-eu-não-contei-tudo. – disse num sopro só, que era pra culpa não rolar boca afora.
Silêncio. Do outro lado, ele preparou a orelha, quase vitorioso: a culpa justificava o ofício. Pronto pra terrível confidência, mandou-me prosseguir.
E eu, ah! Tão pesada sem saber-me tão leve, revelei, ignorando a beleza e a dignidade de minha desobediência:
- Roubei-dois-bubbaloos-nas-Lojas-Americanas.








[i] Tirei esta expressão do livro que estou lendo agora: “O livro dos abraços”, de Eduardo Galeano.
[ii] Li este trecho aos 14 anos e nunca mais esqueci. Trata-se do livro “O mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder.

domingo, 9 de agosto de 2015

Poesia das roupas

Em janeiro desse ano, passei as férias na Chapada Diamantina, por entre pés descalços, banhos gelados e pedras acariciadas pelo sol. Voltei de alma simples, com a câmera abarrotada de fotos e a mala encrostada de lama. Um a um, lavei blusas, shorts e tênis. Deixei roupa de molho, joguei algumas meias fora e descobri o poder do Vanish.
Mas teve um short – sempre tem – que teimava em se manter cor de trilha. Lavei uma, duas, três vezes, mas o danado era tinhoso: “Por que ser branco se posso ser da cor da Bahia?”, ele me dizia a cada vez que olhava pra ele. Dei-me por vencida e o deixei num canto do armário, aquele famoso cantinho do depois-eu-vejo-o-que-faço-com-você.
Até que, sete meses depois, numa limpa de roupas, me deparo novamente com ele. Nos encaramos por um tempo: “Você ainda tem esperança de me ver com cara de loja?”, ele me desafiou com um risinho de vencedor. “Última tentativa”, suspirei, e dei o derradeiro cala boca pro seu nariz em pé: de molho no Vanish outra vez.
Algumas horas depois, volto pro campo de batalha, ou melhor, pra bacia. Esfrega daqui, esfrega dali, o short chora lágrimas de lama. Torço uma última vez – o barro pinga e escorre pelos braços. E não é que... tcharam! Eis o branco outra vez!
Eu devia ficar feliz com minha vitória. Por um lado, fiquei – short novo na gaveta. Mas olhei pra bacia, aquela água cor-de-burro-quando-foge e ah! Me veio um sentimento de “balão estourado, de filme que acaba, uma tristeza de gol contra...”[i]: nostalgia da Bahia.
Aquela lama da Chapada era meio mágica, barro escavado por escravos à procura de diamantes, esfregado no rosto em banhos medicinais, pisoteado por guias em seu eterno ganha pão, fotografado por turistas e postado no Instagram. Eu possuía um tiquinho dele no meu armário, e agora... um pedaço de Bahia escorria pelo ralo.
Aprendemos desde cedo a não nos apegarmos a valores materiais. Roupa não é importante – o que importa é o que vestimos por dentro. Enjoou? Doa. Encardiu? Joga fora. Perdeu? Compra outro. E compra outro. E compra outro. Filosofia hippie na embalagem – por dentro, capitalista até dizer chega.
“O que fizemos com as coisas para devotar-lhes um tal desprezo?”[ii] Da onde tiramos a noção de que nossa memória é formada pela pureza das ideias, e não pelo despudor das coisas?
Antigamente, chamavam o puído das roupas de “memória”. Bonito, não? É como dizer que roupa tem poesia. E não tem? O meu short baiano certamente tinha. Ao vestirmos as roupas, elas se casam no corpo: alguns casamentos são bem gostosos, outros, nem tanto. A calça pega o formato do quadril, a saia fica puída ao se esfregar na bolsa, a blusa amarela debaixo do braço. Em silêncio, o armário aberto conta uma história: a impressão digital da sua vida. Quem mais, afinal, tem as mesmas roupas que você?
O pensamento ia longe enquanto a lama escorria pelos dedos. No varal, o short cor de loja outra vez. Coloco-o sobre a face – quem sabe assim cheiros baianos e cariocas se avizinhavam de novo? Mas que nada: só cheiro de sabão. Bem baixinho, porém, a roupa me segreda, toda cheia de malícia: “me vira do avesso”. Devagar, obedeço. Junto à etiqueta cortada, o short exibia um restinho de triunfo: encardida, a borda de dentro sorriu pra mim.












[i] Achei essa passagem do Vargas Llosa, em “Pantaleón e as visitadoras”, tão bonita que não resisti: trouxe pra cá.

[ii] Esse trecho foi retirado do livro “O casaco de Marx, roupas, memória, dor”, de Peter Stallybrass. Aliás, a crônica é toda inspirada nesse livro, que nos faz pensar a nossa relação – sociedade contemporânea capitalista – com coisas e roupas.