domingo, 18 de janeiro de 2015

Pelo menos algo aconteceu

Após um sábado de praia no Leblon, vou ao Zona Sul à procura de guloseimas para a noite. Biquíni por baixo do vestido molhado, Havaianas, pés de areia, cabelo molhado e bagunçado. Na fila de frios, uma mulher à minha frente compartilhava dos mesmos trajes.
- A praia de hoje tava muito quente, né? – ela começa o papo. Toda fila no Rio de Janeiro, afinal, tem que ter um assunto em comum, de preferência sobre o tempo.
Após concordar, ela continua:
- Até a água tava quente demais! Não dava pra refrescar. Acabei passando mal de calor e fui embora.
Concordei mais uma vez, dessa vez um pouco pasma: a praia dela fora definitivamente diferente da minha. Mar caribenho, de ver a unha do pé. Sombra e mate com limão. Boa companhia e um bom livro. Essa tinha sido a minha praia. Mas tudo bem, consenti. Para milhares de cariocas e turistas ao longo da orla de Ipanema e Leblon, correspondem milhares de praias.
- Mas pelo menos.... Ela continuou, relatando-me uma história sobre um pivete que roubara o cordão de um amigo. – Aí ele correu atrás do pivete e, quando alcançou, bateu muito nele. Juntaram uns quinze homens em volta e, se a polícia não tivesse chegado logo, teriam matado o pivete de porrada – Seus olhos brilhavam.
Visivelmente, ela ainda estava contagiada pelo ocorrido. A praia dela fora esse acontecimento, que se esticava agora à fila do supermercado. Ao não me ver compartilhar de seu entusiasmo, ela ainda disse, já um pouco reflexiva:
- Acho que tá todo mundo já de saco cheio dessas coisas... A gente tem que tomar muito cuidado. – Após essa advertência final, nos despedimos.
O que me chamou atenção nesse breve encontro não foi a história em si, infelizmente já tão banal e costumeira. Para não atiçar ânimos exaltados e justiceiros, prefiro nem adentrar seus pormenores. O que me saltou aos ouvidos foi a forma de iniciar o relato: “Mas pelo menos...”.
Mas pelo menos algo aconteceu na praia. Pelo menos, ela tinha uma história para contar. Numa época de infinitos entretenimentos, fica difícil nos contentarmos com uma simples praia; precisamos de acontecimentos cada vez mais incríveis para que, através de relatos infindos, consigamos significar e entender ao menos um pouquinho do que nos ocorre.
As possibilidades são inesgotáveis: praia, cinema, show, cachoeira, trilha, restaurante, bar, boate. Entre um programa e outro, no taxi, no ônibus ou no carro, ferramentas como instagram, facebook e whatsapp nos ajudam a assimilar turbilhões de acontecimentos, para nós e para os outros.
O problema é que imagens, por si só, não bastam. Frases curtas, tampouco. Pulamos de um entretenimento ao outro sem significar o que vivenciamos. E aí, no final de semana seguinte, sequer lembramos o que fizemos no anterior. Você lembra?
Os smartphones vieram para erradicar de vez o tempo do ócio. Aquele tempo em que olhávamos a paisagem da janela do carro, ou que andávamos na rua com mãos livres e cabeça vazia. Quantas vezes já me flagrei na pressa e, ao lembrar-me de um e-mail não enviado, me acalmei, pensando: no caminho para o ponto de ônibus mando do celular.
Porém, no tempo da otimização absoluta do tempo, esquecemos do fundamental: precisamos do vazio, do esquecer-se das horas, para criar. E sequer digo de criar poemas, romances ou quadros. Falo de criar nossa própria vida. De significar o que nos acontece. De trazer para dentro de nós um pouco do turbilhão de fora, enriquecendo-nos e crescendo enquanto indivíduo.
E aí você pergunta: mas o que isso tudo tem a ver com a mulher da fila do supermercado? Tudo, eu respondo. Na ausência de ferramentas internas para assimilar o que nos ocorre, sofremos da ausência de nós mesmos. E, nesse vazio angustiante, ansiamos por acontecimentos cada vez mais incríveis e paisagens cada vez mais estonteantes, para que assim, quem sabe, algo chegue até a gente.

Pelo menos algo aconteceu naquele dia. Em seu sábado de praia, o entretenimento da mulher fora o espancamento do pivete. Era essa a história que ela tinha para contar. História impactante o suficiente para que, entre tapas e chutes, algo dela chegasse até a mulher, anestesiando um pouco seu vazio de acontecimentos. Naquela tarde, me compadeci pela pobreza dos que assistiam ao espetáculo.


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