quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A dignidade da desobediência[i]


Eram tempos de Primeira Comunhão. Eu tinha dez anos, estudava em escola católica e não tinha ideia do significado do ritual. Fizemos um curso preparatório que explicava tudo direitinho. Mas, pra ser sincera, eu só pensava no gosto da hóstia. Seria doce ou salgada? Molinha ou crocante? Gulosa de nascença, imaginava como seria um pão bem fininho se dissolvendo no céu da boca.
No dia do ritual, veio a família toda. Não entendi o alvoroço, mas gostei da atenção. Minha mãe mandou fazer na costureira a roupa branca: conjuntinho de saia no joelho e blusa de botão, com rendinhas nas mangas e nas barras. Meia calça e sapato branco. Pela primeira vez, fui ao salão fazer as unhas e o cabelo. “Não tira a cutícula, tá?”, mamãe pediu à manicure. Não sabia o que era cutícula, mas não esquentei. Cada coisa a seu tempo. Naquele sábado, eu já galgara importantes degraus do mundo adulto.
Dizem que o melhor da festa é esperar por ela. E este certamente foi o caso. Dos preparativos, aliás, o evento mais marcante foi minha primeira confissão. “Para comungar”, disse o padre, “é preciso confessar antes”. Não entendi a conexão, mas também não estranhei. Afinal, quando se tem dez anos, tudo é possível; qualquer caminho é natural. 
(Li, certa vez, que se uma criança vê o pai voando na cozinha, exclama com naturalidade: “Olha o papai voando!”. Já um adulto... Cai morto, desmaia, para num hospício)[ii].
Voltando à confissão. A igreja, da escola, era escura e de sinistros rumores: diziam as más línguas que a santa até mexia (e dizia-se tanto que a coordenadora, certa vez, teve que ir de sala em sala desmentindo o boato). Por via das dúvidas, entrei na igreja desviando o olhar. O coração, pequenino, rebentava o peito.
- Luisa Benevides, o padre chamou.
Era minha vez de confessar.
Esta é, talvez, uma das lembranças mais escuras que tenho. Por entre uma renda de madeira, o padre ordenou que declarasse meus crimes. “Que nervoso, não poder ver com quem converso”, pensei. Mas se é assim, é assim. Na véspera, havia ensaiado minha breve confissão que, na hora, breveou ainda mais:
- Brigo-muito-com-meu-irmão – disse, sem respirar.
- Cinco Pai Nossos e cinco Ave Marias.
“Então é só isso?”, aliviei. Que maravilha ser cristã! Depois de rezar, podia até brigar de novo: em dez anos, rezava mais cinco de cada e pronto. Com passos de algodão, já ia ajoelhando quando... Peraí, alguma coisa não estava certa: não revelara todo o meu delito.
Senti a culpa na garganta: eu mentira ao padre. Pela primeira vez, o chumbo do pecado vomitava o peito. Seria aquele meu ingresso ao mundo adulto? Divisa do paraíso perdido? Sombras de nuvem escureceram as sobrancelhas.
Olhei pro confessionário: vazio. Ainda dava tempo...
Voltei correndo; o coração aos tropeços. A lista alfabética dos pecadores prosseguia, mas o padre tinha que me escutar.
- Padre-eu-não-contei-tudo. – disse num sopro só, que era pra culpa não rolar boca afora.
Silêncio. Do outro lado, ele preparou a orelha, quase vitorioso: a culpa justificava o ofício. Pronto pra terrível confidência, mandou-me prosseguir.
E eu, ah! Tão pesada sem saber-me tão leve, revelei, ignorando a beleza e a dignidade de minha desobediência:
- Roubei-dois-bubbaloos-nas-Lojas-Americanas.








[i] Tirei esta expressão do livro que estou lendo agora: “O livro dos abraços”, de Eduardo Galeano.
[ii] Li este trecho aos 14 anos e nunca mais esqueci. Trata-se do livro “O mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder.

domingo, 9 de agosto de 2015

Poesia das roupas

Em janeiro desse ano, passei as férias na Chapada Diamantina, por entre pés descalços, banhos gelados e pedras acariciadas pelo sol. Voltei de alma simples, com a câmera abarrotada de fotos e a mala encrostada de lama. Um a um, lavei blusas, shorts e tênis. Deixei roupa de molho, joguei algumas meias fora e descobri o poder do Vanish.
Mas teve um short – sempre tem – que teimava em se manter cor de trilha. Lavei uma, duas, três vezes, mas o danado era tinhoso: “Por que ser branco se posso ser da cor da Bahia?”, ele me dizia a cada vez que olhava pra ele. Dei-me por vencida e o deixei num canto do armário, aquele famoso cantinho do depois-eu-vejo-o-que-faço-com-você.
Até que, sete meses depois, numa limpa de roupas, me deparo novamente com ele. Nos encaramos por um tempo: “Você ainda tem esperança de me ver com cara de loja?”, ele me desafiou com um risinho de vencedor. “Última tentativa”, suspirei, e dei o derradeiro cala boca pro seu nariz em pé: de molho no Vanish outra vez.
Algumas horas depois, volto pro campo de batalha, ou melhor, pra bacia. Esfrega daqui, esfrega dali, o short chora lágrimas de lama. Torço uma última vez – o barro pinga e escorre pelos braços. E não é que... tcharam! Eis o branco outra vez!
Eu devia ficar feliz com minha vitória. Por um lado, fiquei – short novo na gaveta. Mas olhei pra bacia, aquela água cor-de-burro-quando-foge e ah! Me veio um sentimento de “balão estourado, de filme que acaba, uma tristeza de gol contra...”[i]: nostalgia da Bahia.
Aquela lama da Chapada era meio mágica, barro escavado por escravos à procura de diamantes, esfregado no rosto em banhos medicinais, pisoteado por guias em seu eterno ganha pão, fotografado por turistas e postado no Instagram. Eu possuía um tiquinho dele no meu armário, e agora... um pedaço de Bahia escorria pelo ralo.
Aprendemos desde cedo a não nos apegarmos a valores materiais. Roupa não é importante – o que importa é o que vestimos por dentro. Enjoou? Doa. Encardiu? Joga fora. Perdeu? Compra outro. E compra outro. E compra outro. Filosofia hippie na embalagem – por dentro, capitalista até dizer chega.
“O que fizemos com as coisas para devotar-lhes um tal desprezo?”[ii] Da onde tiramos a noção de que nossa memória é formada pela pureza das ideias, e não pelo despudor das coisas?
Antigamente, chamavam o puído das roupas de “memória”. Bonito, não? É como dizer que roupa tem poesia. E não tem? O meu short baiano certamente tinha. Ao vestirmos as roupas, elas se casam no corpo: alguns casamentos são bem gostosos, outros, nem tanto. A calça pega o formato do quadril, a saia fica puída ao se esfregar na bolsa, a blusa amarela debaixo do braço. Em silêncio, o armário aberto conta uma história: a impressão digital da sua vida. Quem mais, afinal, tem as mesmas roupas que você?
O pensamento ia longe enquanto a lama escorria pelos dedos. No varal, o short cor de loja outra vez. Coloco-o sobre a face – quem sabe assim cheiros baianos e cariocas se avizinhavam de novo? Mas que nada: só cheiro de sabão. Bem baixinho, porém, a roupa me segreda, toda cheia de malícia: “me vira do avesso”. Devagar, obedeço. Junto à etiqueta cortada, o short exibia um restinho de triunfo: encardida, a borda de dentro sorriu pra mim.












[i] Achei essa passagem do Vargas Llosa, em “Pantaleón e as visitadoras”, tão bonita que não resisti: trouxe pra cá.

[ii] Esse trecho foi retirado do livro “O casaco de Marx, roupas, memória, dor”, de Peter Stallybrass. Aliás, a crônica é toda inspirada nesse livro, que nos faz pensar a nossa relação – sociedade contemporânea capitalista – com coisas e roupas.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Restos de alegria

Muito orgulhosa com minha primeira ilustração! Foi para a capa de um conto para o Brasil em Prosa, concurso de contos do Globo em parceria com a Amazon. Tive a grande ajuda do Pedro Chaves, que fez o design da capa, a partir da ilustração:



Pra quem tiver a curiosidade de ler o conto e avaliar, o link é esse a seguir:

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Vamos de limeriques?

o sapo fazia polichinelo                       
vestia lã e calçava chinelo
uma minhoca
comia paçoca
viu o sapo e gargalhou farelo


remédio pra tudo é poesia
se juntar o vinho ou a sangria
cura dor de dente
paixão adolescente
piriri, mau olhado, gripe e azia


o vovô já era pra lá de caduco
quis provar que não tava maluco
foi jogar baralho
com o espantalho
esqueceu a regra e perdeu no truco

domingo, 18 de janeiro de 2015

Pelo menos algo aconteceu

Após um sábado de praia no Leblon, vou ao Zona Sul à procura de guloseimas para a noite. Biquíni por baixo do vestido molhado, Havaianas, pés de areia, cabelo molhado e bagunçado. Na fila de frios, uma mulher à minha frente compartilhava dos mesmos trajes.
- A praia de hoje tava muito quente, né? – ela começa o papo. Toda fila no Rio de Janeiro, afinal, tem que ter um assunto em comum, de preferência sobre o tempo.
Após concordar, ela continua:
- Até a água tava quente demais! Não dava pra refrescar. Acabei passando mal de calor e fui embora.
Concordei mais uma vez, dessa vez um pouco pasma: a praia dela fora definitivamente diferente da minha. Mar caribenho, de ver a unha do pé. Sombra e mate com limão. Boa companhia e um bom livro. Essa tinha sido a minha praia. Mas tudo bem, consenti. Para milhares de cariocas e turistas ao longo da orla de Ipanema e Leblon, correspondem milhares de praias.
- Mas pelo menos.... Ela continuou, relatando-me uma história sobre um pivete que roubara o cordão de um amigo. – Aí ele correu atrás do pivete e, quando alcançou, bateu muito nele. Juntaram uns quinze homens em volta e, se a polícia não tivesse chegado logo, teriam matado o pivete de porrada – Seus olhos brilhavam.
Visivelmente, ela ainda estava contagiada pelo ocorrido. A praia dela fora esse acontecimento, que se esticava agora à fila do supermercado. Ao não me ver compartilhar de seu entusiasmo, ela ainda disse, já um pouco reflexiva:
- Acho que tá todo mundo já de saco cheio dessas coisas... A gente tem que tomar muito cuidado. – Após essa advertência final, nos despedimos.
O que me chamou atenção nesse breve encontro não foi a história em si, infelizmente já tão banal e costumeira. Para não atiçar ânimos exaltados e justiceiros, prefiro nem adentrar seus pormenores. O que me saltou aos ouvidos foi a forma de iniciar o relato: “Mas pelo menos...”.
Mas pelo menos algo aconteceu na praia. Pelo menos, ela tinha uma história para contar. Numa época de infinitos entretenimentos, fica difícil nos contentarmos com uma simples praia; precisamos de acontecimentos cada vez mais incríveis para que, através de relatos infindos, consigamos significar e entender ao menos um pouquinho do que nos ocorre.
As possibilidades são inesgotáveis: praia, cinema, show, cachoeira, trilha, restaurante, bar, boate. Entre um programa e outro, no taxi, no ônibus ou no carro, ferramentas como instagram, facebook e whatsapp nos ajudam a assimilar turbilhões de acontecimentos, para nós e para os outros.
O problema é que imagens, por si só, não bastam. Frases curtas, tampouco. Pulamos de um entretenimento ao outro sem significar o que vivenciamos. E aí, no final de semana seguinte, sequer lembramos o que fizemos no anterior. Você lembra?
Os smartphones vieram para erradicar de vez o tempo do ócio. Aquele tempo em que olhávamos a paisagem da janela do carro, ou que andávamos na rua com mãos livres e cabeça vazia. Quantas vezes já me flagrei na pressa e, ao lembrar-me de um e-mail não enviado, me acalmei, pensando: no caminho para o ponto de ônibus mando do celular.
Porém, no tempo da otimização absoluta do tempo, esquecemos do fundamental: precisamos do vazio, do esquecer-se das horas, para criar. E sequer digo de criar poemas, romances ou quadros. Falo de criar nossa própria vida. De significar o que nos acontece. De trazer para dentro de nós um pouco do turbilhão de fora, enriquecendo-nos e crescendo enquanto indivíduo.
E aí você pergunta: mas o que isso tudo tem a ver com a mulher da fila do supermercado? Tudo, eu respondo. Na ausência de ferramentas internas para assimilar o que nos ocorre, sofremos da ausência de nós mesmos. E, nesse vazio angustiante, ansiamos por acontecimentos cada vez mais incríveis e paisagens cada vez mais estonteantes, para que assim, quem sabe, algo chegue até a gente.

Pelo menos algo aconteceu naquele dia. Em seu sábado de praia, o entretenimento da mulher fora o espancamento do pivete. Era essa a história que ela tinha para contar. História impactante o suficiente para que, entre tapas e chutes, algo dela chegasse até a mulher, anestesiando um pouco seu vazio de acontecimentos. Naquela tarde, me compadeci pela pobreza dos que assistiam ao espetáculo.


sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Carta ao Ano Novo

Ano novo é como uma página em branco. Dá uma agonia... Reluzente a doer a vista, lá vai ele a nos provocar: “E agora, qual fonte você vai usar? Não vá me dizer Times New Roman de novo... E qual cor? Promete sair do pretinho básico, ao menos de vez em quando?”. Para responder às cobranças de sempre, dessa vez escrevi uma carta.

“Querido ano novo,

Como é difícil olhar de frente para você! Encaro a tela em branco há horas, sem encontrar as palavras com as quais te dirigir. São as primeiras letras do ano, e desconheço suas cores e fontes.
Não quero camuflar sua importância, Sr. Ano Novo, com metas e promessas. Seria quase uma blasfêmia. Uma forma de não te olhar na cara. Pois ambos sabemos – eu e você – que não sou eu a dona do pedaço.
Todo ano, escrevo listas, tão logo esquecidas. Item por item, todos atropelados. Avalanche de Vida, é isso o que o Senhor é. O que são meus votos para 2015 frente à potência dos seus ventos?
Se me permite, Sr. Ano Novo, peço olhos para fora. Quero observar a fonte de cada letra escrita. Quais são as cores de suas palavras faladas? Também desejo ouvidos para o amanhã. De quando em vez, sussurra-me seus segredos? E, se eu adoecer de palavras, acaricie-me com seus silêncios?
Presenteie-me também com um coração bem turrão. Pronto para porrada, mas sobretudo para o amor. Porque é preciso mais força para admirar um passarinho no asfalto do que para aguentar as alfinetadas nossas de cada dia.
 Peço pulmões fortes, Sr. Ano Novo, para mergulhar fundo em seu fluxo de palavras. Corrente de letras e mais letras, escarradas sempre à frente. Me dê fôlego para acompanhá-las de perto e sabedoria pra perceber quando eu estiver muito para trás.
Porém, mais que pedir, desejo agradecer. Porque o senhor é a Vida, outra vez a renovar. Para 2015, meu voto é um só: vamos de mãos dadas?

Da sua,
Luisa"