- A palavra toma banho de porta aberta. É isso. Pega a palavra polenta, por exemplo. Ela é massuda, encorpada, quente. Diferente da palavra pepino, que é uma palavra mais fina, leve, refrescante. As palavras se escancaram, se arreganham, a gente só tem é que prestar um pouco de atenção nelas, parar, sentir o cheiro, imaginar a textura, a cor, se a palavra é quente ou fria, magra ou gorda, clara, escura. É isso o que eu faço o tempo todo, é isso o que eu tô fazendo agorinha mesmo, nesse bar com você. Depois, quando chego em casa, tudo o que eu tenho que fazer é passar pro papel. – Arrematei, enquanto limpava com a mão o bigode de espuma que o chope tinha deixado.
Ele só tinha me perguntado o que eu fazia, e eu disse eu escrevo, como quem diz sou advogada ou médica. Ele me devolveu um sorriso intimidado, então você é escritora, e aí já era, destrambelhei todo um discurso até chegar nas palavras tomando banho. Enquanto tagarelava, ele me olhava com uma cara de quem falava outra língua. E ele falava outra língua, eu sabia bem e até curtia que fosse assim. Eu só tinha dito tudo aquilo porque gostava do jeito que as pessoas reparavam nas minhas pupilas se acendendo toda vez que eu falava em escrever. E quando não me entendiam era ainda melhor: olhares abobalhados me faziam subir às alturas.
- Vai mais um? - o garçom me perguntou já trocando a tulipa. Fiz que sim com a cabeça e, enquanto ele ia ao banheiro e eu saboreava outra vez o primeiro gole, pensava sozinha no efeito dos chopes. A cerveja me conectava todas as ideias por dentro, as palavras vinham correndo de mãos dadas, uma e depois a outra, e a outra e a outra. Chegavam apressadas, famintas de voz, ansiosas pra serem faladas, escritas, vomitadas no burburinho do mundo. Tinha vezes até que elas se atropelavam e acabavam amontoadas, indefinidas - onde termina uma e começa a outra? - feito brincadeira de cabo-de-guerra quando acaba. Quando eu bebia, as palavras tinham fogo no rabo.
Se eu me esforçasse, sentia até a textura delas, tinham algo dessa mistura de chope com poeira que escorre no peito decotado nos dias quentes. As palavras cheiravam a horário de verão. Eram quase negras, esfumaçadas, e gostavam mesmo era de chegar em bando, junto com a neblina da noite. Tinham um quê de adolescente: vinham tímidas, camufladas com o escuro do céu, mas era só se darem as mãos, começarem um tititi aqui e outro ali, que logo logo se assanhavam todas convidativas, soltando de vez em quando uns gritinhos de para, para, que de verdade não era pra parar coisa nenhuma. O que elas queriam era que a gente continuasse, uma frase e depois a outra, venham todas de uma vez que a vida é curta e passa depressa.
Depois, já em casa, era só catar os restos da noite e passar pro papel. Só isso. Ser escritora afinal era coisa simples, mas ele não precisava saber desse detalhe, pelo menos não por enquanto. Que ele seguisse com seu sorriso intimidado, achando que ser escritora era feito ser astronauta ou atriz de hollywood, viver de estrelas, enquanto ele, bom, não sei bem o que ele fazia, mas já imagino um escritório com janelas de vidro sempre fechadas, ele e os colegas de trabalho trocando vídeos de putaria no whatsapp enquanto vendiam suas horas a sabe-se lá quem. Que ele seguisse sem desconfiar que o que fazia não passava de uma grande brincadeira de mau gosto, qualquer coisa sobre vender números, encher de abas uma planilha, enquanto eu, ah, que eu seguisse com meus restos de noite.
Os pensamentos continuavam amarradinhos, um lençol amarrado ao outro e ao outro e ao outro, todos descendo depressa rumo à fonte de palavras que jorrava sem cessar. Fuga de rapunzel. De repente, um estalo: por que catar as sobras se as palavras chegavam em bando, foguentas feito eu com meu chope já pela metade? Peguei um guardanapo, achei uma caneta perdida na bolsa. Vamos rápido, antes que ele volte e me ache uma louca. Tentei rabiscar alguma coisa, as palavras cheiram a verão e etc., mas só o que vinham eram migalhas de pensamento, expressões soltas de frases que já se foram. A velocidade do pensamento é maior do que a velocidade da luz, algum filósofo disse uma vez assim. Mas ele tá vindo, amassei rápido o guardanapo, joguei na bolsa junto com a caneta, e já fui dizendo, bebe logo que seu chope tá esquentando.
No dia seguinte, ele me mandou uma mensagem perguntando se eu tinha espiado as palavras se ensaboando naquele domingo. A pergunta me trouxe um flash, tipo um retalho de sonho, do que é que ele tá falando mesmo? Fui rebobinando a noite passada até chegar outra vez nas palavras tomando banho. Um sorrisinho se assanhou no canto da boca: ele podia falar outra língua, e falava mesmo, mas se lembrou da minha tagarelice, se bobear ficou até pensando naquela história da polenta e do pepino. Já imaginei logo ele comprando hoje cedo o cigarro da ressaca na banca de jornal, pegando o troco e pensando: e moeda? É uma palavra quente ou fria? Magra ou gorda?
Com certeza, a mensagem dele era efeito das minhas pupilas de ontem, eu me dizia enquanto entrava em casa com os braços vermelhos de sacolas do mercado. Mas também podia ser porque ele queria me comer, é claro. De todo modo, não deixava de ser criativa, o máximo de poesia a que ele conseguia chegar, e se fosse pra me comer, que me comesse com poesia. Deixei as compras na bancada da cozinha, peguei no celular e já fui respondendo que as palavras não gostavam muito de banho aos domingos, dava preguiça, mas quem sabe logo mais elas não se animavam. A cada legume que eu tirava da sacola, era mais um apito e uma luzinha se acendendo. Se elas não animarem, eu pego e apareço no lugar delas, ele me respondeu mais ou menos assim. Sua atitude me fez estremecer, mas eu tinha que continuar o jogo, flertar com palavras era o meu ofício, afinal. Hmmm…, fui dizendo cheia de reticências enquanto passava uma água na sacola reciclável suja de chorume, acabei de ligar o chuveiro, se elas não aparecerem pra me fazer companhia, te chamo sim, três pontinhos e uma carinha piscando. Continuamos nessa punhetagem mais um pouco, até ficar na cara que bom... foda-se as palavras.
Quando ele chegou, eu já tava na segunda taça de vinho. Tinha comprado duas garrafas no mercado, vai que… E foi. Bastou dizer pra ele que as palavras me abandonaram e me deixaram sozinha no banho, que ele respondeu: me passa o endereço que tô indo praí. Assim mesmo, sem poesia nenhuma. A essa altura, é bom dizer que eu já tava cagando pra poesia. Tinha acabado de abrir o vinho, aberto meu moleskine novo, a caneta de que mais gostava. Estava sentada no sofá, com as pernas esticadas e a página em branco. Não interessa se é moleskine, guardanapo ou laptop, página em branco é tudo igual, eu pensava enquanto uma gota de vinho caía estreando a primeira folha. Olhei pro celular, nenhuma mensagem dele. Quando vi, meus dedos formigando já tinham destravado, aberto a conversa e deixado as palavras saírem prontinhas, dizendo que tinham me abandonado e coisa e tal. O que, afinal, não era de todo verdade: elas só preferiam ser enviadas a ser fechadas sob a capa vermelha.
Ele chegou de cara lavada, o corpo limpo de domingo à noite. Era a primeira vez que eu olhava pra ele no claro. Ele tinha uma pinta esquisita no nariz, será que era uma verruga? Seus olhos tímidos me diziam que ele não era tudo aquilo. Pensei se meu olhar também não dizia o mesmo, e tratei logo de desviar as pupilas pra baixo. No caminho, veio o relance de uma amiga dizendo que a primeira coisa que reparava num homem eram seus sapatos. Não sei se concordava, mas por via das dúvidas reparei, cheia de medo de, além do sinal no nariz, ele também ser cafona. Mas ele tava de allstar. Ai, ele tava de allstar...
- Toma vinho?, perguntei já enchendo sua taça antes mesmo dele responder que tomava. Sentamos no sofá, um escondendo os olhos do outro, os dois bebendo mais rápido do que falando. Perguntamos de família, de trabalho e de outras coisas que lembravam segunda-feira. A conversa saía molenga e arrastada, ela toda uma grande mentira: a gente fazendo de conta que se importava, a gente sabendo bem que não tava nem aí. As palavras serviam mesmo era pra disfarçar os olhos.
Até que ele viu meu moleskine.
- Tava escrevendo, é?
Suas mãos de cigarro, de álcool e de putaria no whatsapp já iam pegando no meu caderno. Olhei pros seus dedos morenos e peludos e de repente me vi pálida, de uma adolescência virginal, outra vez debutante apavorada de que me abrissem o diário. Meu caderno não era bom o suficiente praquelas mãos. Ainda que pálida e virgem, fui mais rápida que ele e tratei logo de pegar o moleskine, aterrorizada de que ele abrisse e desse de cara com a página em branco. Se a folha ainda estivesse toda branca, ainda ia, era só dizer que o caderno era novo, que eu ainda não tinha começado, podia até mentir dizendo que tava terminando um outro. Mas a mancha de vinho denunciava que eu tinha tentado, que o branco tinha me encarado e que ele, e não eu, tinha vencido. A mancha arroxeada entregava meus medos, contava a quem quisesse ouvir que as palavras não eram tão minhas amigas assim, que eram elas que mandavam na porra toda, que elas podiam aparecer pra mim ou pra outra pessoa, hoje, amanhã ou nunca mais. As palavras podiam até decidir que eu não era escritora.
Com o caderno sobre o peito, eu me sentia completamente nua. Sua capa tinha desmanchado pra mim, aquela capa dura vermelha, que você olha a quilômetros de distância e vê logo que é um moleskine. Tudo o que restava era meu corpo em branco, a página em branco, a mancha roxa de quem havia tentado. Guardei o caderno na gaveta do rack, ele me olhando esse tempo todo, o que aconteceu que ela parou de falar? As palavras tinham me deixado na mão, com elas não se podia mesmo contar, mas tudo bem, o que importa é que nem tudo estava perdido: eu bem conhecia um jeito delicioso de me vestir outra vez. Minhas pupilas seguiriam disfarçadas, as dele ficariam nuas feito meu moleskine sem capa.
Dei uma boa golada no vinho, apoiei a taça sobre a mesa, sabendo que só a veria de novo na segunda de manhã. Limpei o roxo da boca, encarei seus olhos até eles se sentirem tão nus como eu até então. Eu estava com um vestido de alça, desses que basta um toque pra rolarem ombro abaixo. Toquei numa alça e depois na outra, fui sentindo o vestido deslizar sobre o corpo liso e hidratado, o pano escorregando sem qualquer atrito com a pele até cair por completo no chão. Enquanto os pés se desvencilhavam da roupa, meu olhar vestido continuava fixo no dele, já tão despido, coitado, mas calma, aguenta que tem mais. Fui tirando a roupa de baixo bem devagar, a vingança se esticando sem pressa, juntinho com o resto de domingo. Enfim pelada, peguei na sua mão, como quem conduz uma criança ao parque, e levei seus dedos pra tomarem um belo de um banho.