Após um sábado de praia no Leblon, vou ao Zona Sul à procura de
guloseimas para a noite. Biquíni por baixo do vestido molhado, Havaianas, pés
de areia, cabelo molhado e bagunçado. Na fila de frios, uma mulher à minha
frente compartilhava dos mesmos trajes.
- A praia de hoje tava muito quente, né? – ela começa o papo. Toda fila
no Rio de Janeiro, afinal, tem que ter um assunto em comum, de preferência
sobre o tempo.
Após concordar, ela continua:
- Até a água tava quente demais! Não dava pra refrescar. Acabei passando
mal de calor e fui embora.
Concordei mais uma vez, dessa vez um pouco pasma: a praia dela fora
definitivamente diferente da minha. Mar caribenho, de ver a unha do pé. Sombra
e mate com limão. Boa companhia e um bom livro. Essa tinha sido a minha praia.
Mas tudo bem, consenti. Para milhares de cariocas e turistas ao longo da orla de
Ipanema e Leblon, correspondem milhares de praias.
- Mas pelo menos.... Ela continuou, relatando-me uma história sobre um
pivete que roubara o cordão de um amigo. – Aí ele correu atrás do pivete e,
quando alcançou, bateu muito nele. Juntaram uns quinze homens em volta e, se a
polícia não tivesse chegado logo, teriam matado o pivete de porrada – Seus
olhos brilhavam.
Visivelmente, ela ainda estava contagiada pelo ocorrido. A praia dela fora esse acontecimento, que se esticava
agora à fila do supermercado. Ao não me ver compartilhar de seu entusiasmo, ela
ainda disse, já um pouco reflexiva:
- Acho que tá todo mundo já de saco cheio dessas coisas... A gente tem
que tomar muito cuidado. – Após essa advertência final, nos despedimos.
O que me chamou atenção nesse breve encontro não foi a história em si,
infelizmente já tão banal e costumeira. Para não atiçar ânimos exaltados e
justiceiros, prefiro nem adentrar seus pormenores. O que me saltou aos ouvidos
foi a forma de iniciar o relato: “Mas pelo menos...”.
Mas pelo menos algo aconteceu na praia. Pelo menos, ela tinha uma
história para contar. Numa época de infinitos entretenimentos, fica difícil nos
contentarmos com uma simples praia; precisamos de acontecimentos cada vez mais incríveis
para que, através de relatos infindos, consigamos significar e entender ao
menos um pouquinho do que nos ocorre.
As possibilidades são inesgotáveis: praia, cinema, show, cachoeira,
trilha, restaurante, bar, boate. Entre um programa e outro, no taxi, no ônibus
ou no carro, ferramentas como instagram, facebook e whatsapp nos ajudam a
assimilar turbilhões de acontecimentos, para nós e para os outros.
O problema é que imagens, por si só, não bastam. Frases curtas,
tampouco. Pulamos de um entretenimento ao outro sem significar o que
vivenciamos. E aí, no final de semana seguinte, sequer lembramos o que fizemos
no anterior. Você lembra?
Os smartphones vieram para erradicar de vez o tempo do ócio. Aquele
tempo em que olhávamos a paisagem da janela do carro, ou que andávamos na rua
com mãos livres e cabeça vazia. Quantas vezes já me flagrei na pressa e, ao
lembrar-me de um e-mail não enviado, me acalmei, pensando: no caminho para o
ponto de ônibus mando do celular.
Porém, no tempo da otimização absoluta do tempo, esquecemos do
fundamental: precisamos do vazio, do esquecer-se das horas, para criar. E sequer
digo de criar poemas, romances ou quadros. Falo de criar nossa própria vida. De
significar o que nos acontece. De trazer para dentro de nós um pouco do
turbilhão de fora, enriquecendo-nos e crescendo enquanto indivíduo.
E aí você pergunta: mas o que isso tudo tem a ver com a mulher da fila
do supermercado? Tudo, eu respondo. Na ausência de ferramentas internas para
assimilar o que nos ocorre, sofremos da ausência de nós mesmos. E, nesse vazio
angustiante, ansiamos por acontecimentos cada vez mais incríveis e paisagens
cada vez mais estonteantes, para que assim, quem sabe, algo chegue até a gente.
Pelo menos algo aconteceu naquele dia. Em seu sábado de praia, o
entretenimento da mulher fora o espancamento do pivete. Era essa a história que
ela tinha para contar. História impactante o suficiente para que, entre tapas e
chutes, algo dela chegasse até a mulher, anestesiando um pouco seu vazio de
acontecimentos. Naquela tarde, me compadeci pela pobreza dos que assistiam ao
espetáculo.
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