Ontem eu estava lá, no coração dos acontecimentos. Fui assim, despretensiosa, só pra ver o que ia
acontecer. No caminho, uma imagem curiosa: meninos engraxavam os sapatos dos
policiais. Afinal de contas, pensei, um uniforme bem alinhado e armas
imponentes pedem sapatos bem lustrosos. Vai que aparece na Globo?
Quando cheguei na manifestação, me senti meio deslocada, sem conseguir
acompanhar os tantos gritos de guerra e me sentindo um pouco velha pra galera
que lá estava. Mas estava gostando do clima alegre, e poder mandar em alto e
bom som o nosso queridinho ir tomar no cu foi o clímax da noite. Nos prédios,
projeções sarcásticas sobre o Cabral. Nos postes, caricaturas do governador. No
chão, cartazes bem fundamentados sobre muitos fatos esdrúxulos da nossa cidade.
A galera sabia o que estava fazendo; tudo estava articulado.
Ao comando de “dá uma volta”, demos a volta no quarteirão. Moradores dos
prédios nos apoiavam; afinal, nem todos por ali são “madames do Leblon”, como
se gosta tanto de dizer, num certo preconceito às avessas. Mas, nessa volta,
comecei a sentir uma mudança no clima, espécie de ventania a anunciar a tempestade que vem vindo. Do nada, muitos meninos apareceram, todos
encapuzados. Quando digo meninos, não é por acaso: pelos olhos podia-se ver
claramente que muitos deles não tinham sequer dezoito anos. Eram meninos de classe
média, assim, que nem a gente mesmo. Atônitos, eles olhavam para os lados, como
se esperassem o momento certo de agir, completamente alheios aos gritos de
guerra da “galera careta”. “Isso vai dar merda”, pensei.
Terminada a volta no quarteirão, houve uma boa dispersão e eu aproveitei
para me retirar também. Afinal, não havia mais nada a ser feito. Fui comer uma
pizza por perto, sempre ao som dos helicópteros, e depois fui pra casa.
Ao chegar, qual não foi minha surpresa ao constatar a Ataulfo de Paiva,
a apenas um quarteirão da minha casa, sendo tomada pelo fogo! Tive que pôr o
som da TV no máximo, pois o barulho dos helicópteros do lado de fora era
ensurdecedor.
Fiquei ali, olhando as imagens e sem saber o que pensar. Não queria
repetir o eco da maioria, efeitos da mídia alienante. Eu repetia para mim
mesma: “não, não são vândalos. Não, eles não estão estragando as manifestações.
Não, eles não são infiltrados e nem vieram para saquear. Eles também são
manifestantes, eles também não estão satisfeitos. Eles também vieram para fazer
política”. Mas, ainda assim, ao olhar aquele cenário devastador, algo
estava errado. Mas o quê?
É fácil, muito fácil, pensar que o problema está nesses “baderneiros”,
que só vêm para estragar uma manifestação tão bonita. Por outro lado, também é
muito fácil pôr a culpa nos policiais, igualmente vândalos. Numa espécie de
“batata quente”, um joga a bola para o outro, enquanto todos dizem: “foi ele
quem começou”. Não me interessa, na
verdade, quem começou: todos são efeitos e causas do mesmo Sistema.
Sistema de bolhas, eu diria. Cada um na sua: na sua escola, no seu
trabalho, no seu bairro, no seu prédio, na sua família, no seu quarto. “Cada um
no seu quadrado”: tosco lema de uma sociedade igualmente tosca. A coisa, aliás,
é tão absurda que ditados como “o direito de um termina onde começa o do outro”
passam a fazer sentido. Mas peraí: os direitos não eram pra ser expressões e
construções de um coletivo? “O que é coletivo mesmo?”, já escuto as crianças de
hoje perguntarem aos seus pais.
O problema desse “sistema de bolhas” é que ele é chato. Esvaziado de
sentimentos e de experiências, ele carece de um entre: entre um “de menor” e um adolescente; entre um artista e um
médico; entre um evangélico e um ateu; entre um manifestante e um policial.
Mas eis que, nessas manifestações, as bolhas de repente se rompem.
Estudantes, curiosos, revoltados, pacíficos, jovens, velhos, policiais, governador: todos
junto no mesmo barco, sem saber para onde remar. A coisa é desconcertante, a
confusão é grande. Os problemas, antes escondidos (embora nem tanto), explodem,
como uma ferida que de repente se abre.
É doloroso, sem dúvida, ver a sua cidade no dia seguinte com rastros de
destruição. Porém dor é vida, e é isso o que faltava a todos nós. Fico a pensar
naqueles meninos encapuzados. É bem provável que muitos deles nem sequer
soubessem o que estavam fazendo, mas o mais importante, pelo menos para eles,
estava finalmente lá: eles estavam enfim sentindo.
Raiva, medo, coração batendo rápido, fôlego que se esvai. Reminiscências da
infância, polícia e ladrão, correr até a garganta arder e as pernas
desmancharem.
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