Como toda aventura, esta começou com uma curiosidade, dessas típicas das
almas quando se pretendem investigadoras. Diariamente, conto histórias para
crianças, todas brasileirinhas e engatinhando no novo velho português. Como
seria, porém, contar histórias nossas para bambinos do Velho Continente? Seus
olhinhos brilhariam, como brilham os daqui? Como seus pequenos ouvidos
receberiam o português? Como um carinho? Ou um zumbido de mosquito?
Nosso mergulho nas águas dos contos infantis começou na Feira do Livro
Infantil de Bolonha. De lá, partimos para Florença com uma pequena grande
missão: contar histórias. Nosso grupo, bem variado e um tanto exótico, era uma
boa imagem da mistureba brasileira. Sob as asas de nossa querida professora de
Literatura Infantil, Ninfa Parreiras, arriscamos nossos primeiros voos, cada um
à sua maneira. Tinha escritor, ilustrador, gente nova, gente velha... Gente do
Rio de Janeiro, de Minas Gerais, da Amazônia, de Brasília...
A aventura começou na Bibliotecanova Isolotto, biblioteca pública
referência para o povo de lá. Para nós, reservaram a sala de livros infantis,
com direito a teclados coloridos, cataventos de papel e engenhocas de sucata.
Aliás, um parênteses: cada dia vejo mais que às concepções de criança em cada
país correspondem os espaços dedicados a elas. Por lá, criança é sujeito que
lê, pensa, constrói. Portanto, cabe a ela não somente lugares de
entretenimento ou de consumo, mas também, e arrisco-me a dizer principalmente,
espaços de reflexão e de construção de si e do mundo.
Aos poucos, a Biblioteca foi enchendo de tudo quanto é gente. Tinha
brasileiro curioso, brasileiro escritor, funcionários da biblioteca, mães e, é
claro, muitos bambinos. Começamos nos apresentando, arriscando-nos num italiano
rudimentar, como forma de agradecimento e simpatia aos que tão calorosamente
nos receberam em sua terra. Em seguida, mergulhamos no universo consagrado da
literatura infantil brasileira, com leituras e traduções de monstros como Lygia
Bojunga, Ruth Rocha, Joel Rufino dos Santos, Roger Mello, Ziraldo e Marina
Colasanti.
Ninfa Parreiras, Otávio Júnior, eu, Ruth Leite e Agostinho Ornellas, na Bibliotecanova Isolotto |
Nossa fala terminou com um baita presente: Roger Mello, vencedor do
Prêmio Hans Christian Andersen de Ilustração em Bolonha deste ano, o Nobel da
Literatura Infantil, estava lá e deu uma palhinha do seu dom. Munido de um
pilot preto, começou com simples traços, instigando adivinhações do público
mirim. “São montanhas! É uma boca! São orelhas de um coelho!”, arriscavam.
Terminado o desenho, um conjunto de bocas escancaradas sob a forma de peixes e
tubarões, Roger convocou as crianças, justificando-se: “é que não gosto de
desenhar sozinho”. Por entre cotoveladas, os bambinos lutavam por um pequeno
espaço no papel, dando à obra vida, muitas cores e diferentes histórias. Ufa,
que noite!
Roger Mello, o desenho e as crianças |
No dia seguinte, a saga continuou, dessa vez numa livraria infantil, a
Libreria Cuccumeo. Aliás, que graça de lugar! Em cada cantinho, um livro, uma
história, um aconchego. Era um desses lugares que não dá vontade de ir embora.
A livraria lotou, mal tinha espaço para os contadores de histórias. Apesar do
espaço apertado, da estranheza da língua e das diferentes idades, os olhinhos
mal piscavam ao escutarem brasilidades sob a forma de histórias.
Ninfa Parreiras, eu e nossa tradutora, Adriana Cabral |
A impressão que ficou? Tantas horas de voo, tantos euros gastos, tudo
rapidamente compensado pelos olhares italianos de encanto e fascínio. Que
língua era aquela que sambava, esquentava e aumentava, em ritmo de tambor? Mas
que também ninava, sussurrava e diminuía, em ritmo de violão? Língua musicada,
língua gestual, que a diretora da Biblioteca logo notou: “Vocês falam com o
corpo, enquanto nós falamos com a boca”. Às nossas falas, seguiam as traduções
de uma simpática amiga, meio brasileira, meio italiana. E, às traduções,
seguiam os inevitáveis sorrisos, desses que uma Bolsa Amarela ou um Menino
Maluquinho sempre arrancam. Porque literatura boa é assim: atravessa mares,
culturas e gerações. Diz de todos e de cada um de nós.
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